Compreendendo a Mesa-Redonda de Santiago do Chile e o nascimento da nova museologia 18/05/2022 - 11:57

Dando continuidade aos artigos em comemoração a 20ª Semana Nacional dos Museus, cujo tema para o ano de 2022 trata sobre “O Poder dos Museus”. Hoje abordaremos a Mesa-Redonda de Santiago, evento de suma importância para a definição das bases da Museologia contemporânea, e intrinsecamente ligado à temática do evento, por representar uma mudança de perspectiva relacionada ao papel que os museus desempenham na sociedade. Os outros artigos escritos anteriormente podem ser lidos nos links a seguir O Porquê da Semana Nacional de Museus e O Poder dos Museus.

Realizada em 1972 no Chile pré-golpe, ainda governado por Salvador Allende, a Mesa-Redonda de Santiago tornou-se um marco para a museologia contemporânea. Ali foram reunidos representantes político-culturais de grande parte da América Latina, advindos da Costa Rica, Argentina, Bolívia, Brasil, Chile, Colômbia, El Salvador, Equador, Guatemala, México, Panamá, Peru e Uruguai, para discutir os problemas centrais da museologia no continente, definindo diretrizes em conformidade com a situação socioeconômica de cada país, repensando o trato com o patrimônio e a relação das instituições com a comunidade ao seu entorno. Graças aos apontamentos determinados por este encontro, surgiram pela primeira vez os termos “museu integral” e “sociomuseologia”, dois conceitos-chaves para se pensar a então denominada “Nova Museologia”.

A publicação mais completa referente aos acontecimentos em Santiago foi lançada em 2012 pelo IBRAM (Instituto Brasileiro de Museus) em parceria com o Programa Ibermuseus, com o MINON (Movimento Internacional para uma Nova Museologia), com a UNESCO e com o Departamento de Bibliotecas, Arquivos e Museus do Chile, comemorando os 40 anos do aniversário do encontro. Neste compilado disponível em português, espanhol, inglês e francês, foram reunidas uma série de entrevistas com os presentes na mesa, anexada a uma edição traduzida da revista Museum nº 3, lançada em 1973, que contém um balanço geral do evento, bem como as considerações dos presentes sobre a relevância dos debates um ano depois do ocorrido, o que ficou conhecido como Declaração de Santiago.

Protagonismo latino-americano
A mesa-redonda foi organizada pelo ICOM (Conselho Internacional de Museus) em parceria com a divisão de Patrimônio da UNESCO. O evento ficou registrado como uma “Mesa redonda sobre el desarollo y la importancia de los museos en el mundo moderno”. De caráter progressista e politizado, a Mesa de Santiago se difere das reuniões anteriores pelo protagonismo que os países ditos “subdesenvolvidos” tiveram ao nortear as discussões. Além de não convocar representantes de países pertencentes ao “norte global” (Europa e América do Norte), em Santiago foram definidas como línguas oficiais do encontro o espanhol e o português brasileiro, contrariando as normas internacionais vigentes, que previam que as línguas de conferências globais deveriam ser inglês ou francês.

Das autoridades brasileiras presentes na reunião, a mais influente foi Lygia Martins Costa, ligada ao Instituto do Patrimônio Histórico e Artístico Nacional (Iphan) e responsável pelo setor de bens móveis e integrados. Além dela outra personalidade brasileira também ficou em evidência mesmo sem poder comparecer ao encontro. Paulo Freire foi convocado para a mesa diretamente por seus principais organizadores, que intentaram ter o professor brasileiro na presidência do encontro. Entretanto, essa participação foi vetada por um dos delegados brasileiros da UNESCO. Mas mesmo sem poder comparecer, o pensamento de Freire norteou boa parte das pautas elegidas no encontro.

Das temáticas debatidas em Santiago, a maioria delas tinha como objetivo o desenvolvimento e progresso científico dentro dos países latino americanos, levando em consideração o passado colonial comum, e as marcas que este processo deixou na cultura e economia das nações. Dado que não é possível romper com padrões viciosos de dominação da noite para o dia, foi proposto por muitos dos congressistas o repensar do papel das instituições museológicas que, levando em conta esse cenário, deveriam ser aliadas as comunidades do seu entorno, servindo como central de trocas e fortalecimento da memória local e do patrimônio material e imaterial, numa tentativa de edificar essas comunidades através da educação, e fazê-las soberanas de sua própria cultura.

Abandono do eurocentrismo
Seguindo essa lógica, os museus deveriam abandonar os padrões de construção de conhecimento eurocêntrico, que colocam a instituição no pedestal de “detentor da verdade”, e permitirem-se serem atravessados por movimentações sociais e da cultura, tornando-se núcleo de potência e troca entre comunidades, povos e indivíduos com o seu meio, fortalecendo e privilegiando as relações humanas acima do lucro. Essa estrutura seria utilizada para combater desigualdades sociais e embasar minorias representativas, tais como movimentos indígenas, associações de moradores, círculos de cultura popular, núcleos camponeses, grupos periféricos marginalizados e demais coletividades fragilizadas pela estrutura colonial.

Esse tipo de definição de museu ficou conhecido como museu integral, um espaço concebido sob a luz da pedagogia do oprimido, advinda do pensamento de Paulo Freire, que aliado às diretrizes da prática museal, seria também responsável pelo desenvolvimento social, econômico e cultural de sua comunidade. Pensando em estudar as reverberações desta nova definição de museu, bem como a aplicabilidade de seus conceitos, surgiu como campo acadêmico e de debate dentro da Museologia a Sociomuseologia, área responsável por investigar as relações entre homem, meio e território, sendo esse último compreendido como um agrupado de cultura, meio ambiente e relações entre os indivíduos ocupantes de determinada localidade.

As resoluções tomadas pela Mesa-Redonda de Santiago abalaram permanentemente as estruturas da museologia latino-americana e redefiniram completamente o papel de profissional em museologia e dos museus dentro da sociedade. A partir de 1972 surge então a Nova Museologia, um movimento que engloba teoria e prática museológica, e visa a renovação de todas as instituições da América Latina, aproximando-as de uma abordagem mais humana, consciente, engajada e aliada a sua comunidade, que visa a quebra com o passado colonial, a fim de construir cultural e economicamente, uma sociedade mais justa independente e livre.

Sara da Silva Uliana é estagiaria de Museologia da COSEM

REFERÊNCIAS

ARAUJO, M.M. , BRUNO, M. C. O. Mesa Redonda de Santiago do Chile, ICOM, 1972. Edições Universitárias Lusófonas, nº15, p. 111- 121, 1999. Disponível em:https://recil.ulusofona.pt/handle/10437/11364. Acesso em: 11 abr. 2022

CHAGAS, M. Museologia social: reflexões e práticas (à guisa de apresentação).Cadernos do CEOM. Ano 27, n 41, p 9-21, 2014. Disponível em:https://www.academia.edu/32189989/Museologia_social_reflex%C3%B5es_e_pr%C3%A1ticas_%C3%A0_guisa_de_apresenta%C3%A7%C3%A3o_?auto=citations&from=cover_page. Acesso em: 11 abr. 2022

CRUZ E SOUZA, L. C. A Mesa Redonda de Santiago do Chile e o Desenvolvimento da América Latina: O papel dos Museus de Ciências e do Museu Integral. Museologia & Interdisciplinaridade, v. 9, n. 17, p. 64–80, 2020. Disponível em: https://periodicos.unb.br/index.php/museologia/article/view/30109. Acesso em: 11 abr. 2022.

JUNIOR, J. N., TRAMPE, A., SANTOS, P. A. Mesa Redonda de Santiago do Chile Vol.I.: Mesa Redonda sobre la Importancia y el Desarrollo de los Museos en el Mundo Contemporáneo. 1ª Edição. Brasília. Instituto Brasileiro de Museus, IBRAM. Programa Ibermuseus. 2002

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